Uma família, como reis e princesas.

Desde muito cedo que a palavra família para aquela mãe trazia-lhe dores e sonhos. Não tinha ela uma família que gostasse dela, mas queria para ela uma família para ela gostar. Os pais não a quiseram. Disse que foi isso que lhe disseram sem dizer porquê. Pai cigano, mãe “branca”, filha indesejada. Por isso veio para Braga para ser criada numa instituição. Longe de casa, longe do coração. Depois morreu o pai, mas da mãe nunca mais soube de nada. Longe do coração não se tem casa. Cresceu, aprendeu e saiu da casa que a acolheu quando fez dezoito anos. Não podia ficar lá mais tempo. Não mudaria nada se ficasse mais tempo. Continuaria a não ter família. Sem coração e sem família, porquê uma casa? Longe de casa não se tem coração e sem coração a primeira coisa que se procura não é a família, é a liberdade.Plataforma Família
“Foi a liberdade a primeira coisa que eu procurei quando sai da instituição”, diz ainda como se essa decisão fosse muito recente. Mas não, entrou em braga com dez anos. Depois foi esperar para ver o que é que o destino lhe traria de volta. Sem família, sem coração e sem casa não interessa muito o que o destino tem de prenda, porque é sempre melhor do que não ter nada. Quando conheceu o primeiro companheiro tudo na sua vida piorou. Não queria acreditar que as coisas pudessem ser piores, mas foram. Que lhe interessava não ter família, não ter coração, não ter casa se o que tinha agora era pior. Fugiu, outra vez, para longe com vontade que o destino não fosse capaz de a apanhar. “Eu pensava que a liberdade ia trazer-me as coisas que eu não tinha!”. Não foi assim, pelo menos durante mais uns tempos, muitos dias, muitos anos. A vida foi vivida como se não houvesse amanhã. Só depois é que começou a melhorar. Muito depois. Um companheiro chegou, apaixonou-se! Mesmo. Viviam destemidos sem eira nem beira, mas tinham-se um ao outro.
Começou a ter coração!

Não interessava que a casa fosse uma parte incerta porque havia sempre um destino para ficar no final do dia. Nesse sítio, um tecto, reuniam as coisas juntas durante o dia, para depois vender e ter dinheiro.
Começou a ter uma casa!

Depois foi a primeira gravidez sem contar, mas que seria desejada com toda a força. Se agora ia ter filhos, ia ser ela uma família e teria ela uma família. A sua!
E começou a ter uma família!

Começaria agora uma vida, longe de outras vidas. “Os ciganos têm que ter muitos filhos, é a única riqueza que temos e é por isso que eu quero ter muitos filhos”. Dizia isto com um brilho nos olhos como se não interessasse mais nada. O que interessava era ter uma família e para isso desejava ter mais filhos, para que pudesse cuidar bem, sem que para isto fosse obrigada a ter roupa nova para estrear nos dias importantes.
Mas não faltaria comida. Não faltaria a escola. Não faltaria família porque estes ciganos eram agora a sua família e ela iria fazer crescer a família cigana. Tinha agora um coração, uma casa e uma família e isso é mais importante que todas as outras regras, algumas delas muito estranhas e incompressíveis, porque essas regras não fizeram nada pela sua vida atrás.
“Os meus filhos são felizes, ora veja”, dizia com certeza firme, porque brincavam eles com outras crianças alegres e sem receios. Corriam uns atrás dos outros dizendo nomes engraçados. E riam muito, uns com os outros, uns para os outros. Eram crianças com família, aquelas. A roupa não era nova a estrear, mas eles, juntos, pareciam reis e princesas.

J.Sá

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