A melhor rede social ainda é uma mesa rodeada de amigos

Artigo de opinião de Carlos Marinho, Psicólogo Clínico.

Não raro, ao longo da minha prática clínica, percebo-me expressa ou indeclaradamente a reforçar o aforismo de Jiddu Krishnamurti sobre “não [ser] sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente”. Sendo impossível destrinçar a biografia subjectiva de cada pessoa das condições sócio-históricas que a contextualizam, é legítimo afirmar que as novas formas de perturbação da actualidade podem ser compreendidas em função dos emergentes valores da sociedade de hoje. Com o alargamento dos espaços de opção às esferas próprias do estilo de vida e da moral, o individualismo sagra-se como valor atual dominante, fazendo-se largamente responsável por obscurecer a imprescindibilidade do Outro na criação e manutenção de relações significativas (alteridade), por desvincular o indivíduo do seu grupo, tornando as relações interpessoais fugazes e banais, e destituí-las do seu carácter directo e humano.

Aplicados ao contexto familiar, a auto-expressão, o respeito pela liberdade interna, e o desenvolvimento da personalidade são exemplos que naturalizam, diante dos filhos, uma conduta cada vez mais permissiva, menos ‘autoritária’, mas também mais sugestiva de que os adultos estão a perder capacidade de definir o modelo que pretendem oferecer às novas gerações. Uma anedota conta que certo homem consulta um psiquiatra para lhe dizer: «Doutor, o meu irmão é doido: pensa que é uma galinha», «Por que não o interna?», pergunta o médico «Até podia» responde o outro «Mas preciso dos ovos». Esta vinheta, parece-me, presta-se a ilustrar nitidamente o esquema da dependência que nos une ao que mais nos tem debilitado: pelo conforto do privilégio, negligenciamos o privilégio do conforto. Na esteira da modernização social, os conteúdos da formação cultural básica começam a ser transmitidos com uma carga afectiva diferente, deficitária, muitas vezes omissa por indisponibilidade de uns e outros – e quanto mais subtil é a expressão do afeto, mais facilmente duvidamos dele; sem uma adesão emocional suficiente aos adultos significativos, o processo de aprendizagem das crianças e jovens vê-se perigosamente condicionado, senão mesmo impossibilitado.

Um atento olhar analítico sobre os últimos cem anos de história societal mostrará a crescente diminuição do tempo real que os adultos passam com as crianças, a sua substituição por outras instituições (escolas, creches, centros de estudo) e/ou pela exposição (cada vez mais precoce) a meios de comunicação, crescentemente remodelados e redefinidos pela internet, sobretudo com a emergência e popularização em massa de redes sociais. Aproximando pessoas, gerando reencontros, diminuindo distâncias, pontuando referências, firmando networks e abrindo oportunidades de crescimento profissional, estes recursos levam a novas formas de identificação, de construção da individualidade, e de reforço ao reconhecimento e pertença; também a troca rápida de informações e atualização do estado do mundo em tempo real facilita a decisão de participação em campanhas e atividades de interesse, conferindo-nos uma agradável sensação de controlo, e a diversificação de opções de lazer e entretenimento oferece-nos um recreio mais vasto e apelativo à celebração da liberdade individualista.

Mas paradoxalmente, é do ovo destas novas oportunidades de aproximação que nasce um dos problemas mais sérios que a actualidade oferece à formação de cada cidadão: o adoecimento do afeto – manifesto no défice do desenvolvimento de competências sócioemocionais, na dificuldade de procurar, iniciar e manter um diálogo, na estranheza diante do Outro, no isolamento, na solidão, no tédio, no perfeccionismo, na desestruturação da unidade psicológica, na debilitação da capacidade de valorização pessoal, e na perda do sentido da vida. Deslocadas para o domínio digital, muitas são as pessoas que nele se refugiam, chegando até à dependência patológica, agravando o défice na socialização face-a-face, sobretudo quando há incapacidade de busca de relações no mundo real, provocando um vazio intersubjectivo de estar-com. Nesta linha, a concentração nos dispositivos móveis tende a gerar uma dissociação cada vez maior entre as pessoas e o momento presente, ao mesmo tempo que as encaminha para o preferencial interesse de um estar-a-par sobre a compreensão profunda e significativa da realidade.

Se a aventura do afeto pressupõe não só uma abertura ao Outro mas também uma (re)descoberta do próprio através do Outro, o desafio que o défice de socialização nos apresenta parece exigir toda uma ética voltada para a alteridade e é aqui que, cada vez mais me convenço, que se concentram as coordenadas da felicidade. Ecoando as palavras de Tyler Durden “Trabalhamos em empregos que não gostamos, para comprar um monte de coisa que não precisamos”, e também os avanços tecnológicos parecem cumprir a mesma inglória utilidade. Se apesar de toda a clarividência racional teimamos em repetir o erro de uma certa passividade, é porque, claro, continuamos a priorizar os ovos do privilégio acima da fome de afeto. A decisão, como defende a celebração do individualismo, está nas nossas mãos.

 

Artigo de Carlos Marinho, Psicólogo Clínico.

Mestre em Psicologia Aplicada pela Universidade do Minho, e pós-graduado em Psicologia da Família pela Universidade Católica Portuguesa de Braga. Actualmente, dedica-se à prestação de serviço de psicologia clínica em consultório particular, em pleno coração de Braga.
Trabalha ainda em parceria com o projeto «Animantes», na realização de workshops lúdico-pedagógicos, arteterapia e artcoaching, com crianças, adolescentes, adultos e séniores.

 

Ilustração em destaque de Fido Nesti.

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