Na casa de uma boneca

Tem sete anos. A casa onde vive tem muitos mais. É velha, gasta, pobre. Aquela casa no meio do monte, num sítio onde a água nasce, tem lá dentro uma menina de sete anos, a sua mãe, a avó e a bisavó. Quatro gerações alinhadas naquela casa. Vivem juntas entre paredes ao alto e no meio de todos os desperdícios que se podem recolher sem destino. Outra casa sem chão. Uma casa sem tecto. Agora a esta distância, depois de lá ter estado, imagino se aquela família poderia ser o enredo de uma outra história. Um guião de uma novela que após o contorcionismo de toda a acção termina de forma triunfante com um desfile de vestidos exuberantes e carros potentes à chegada de um casamento realizado junto ao mar. Comparando o imaginário com o cenário real é o absoluto delírio. Fizesse eu indiferente esta comparação, um novo pecado capital se juntaria aos demais.

Não é fácil encontrar debaixo das mesmas telhas quatro gerações de mulheres. Já não há homens, ou eles partiram ou morreram, ou não se sabe muito bem por onde é que andam. O pai da menina morreu de acidente de trabalho. Não se sabe explicar com detalhes. Sabe-se apenas que ficou uma indemnização de dois mil e quatrocentos euros. Uma fortuna no meio daquela miséria pútrida, mas que não paga uma vida. O avô morreu também. Era o único que trabalhava e fazia coisas lá para casa. Dele ficou uma pensão de sobrevivência e uma fotografia que a viúva não sabe explicar. Juntando as riquezas temos na mão pouco mais de duas centenas de euros para alimentar quatro bocas. Não penso sequer no resto, porque tudo me parece supérfluo olhando cada detalhe. Mas a história desta família de mulheres, que vive numa casa que não se parece nada como uma casa, não é uma história bonita. Na vida de qualquer uma delas, dos sete anos aos noventa e três,  muita coisa aconteceu que fez com que aquela família fosse ficando cada vez mais só lá no alto daquele monte. Ninguém quer saber das tristezas alheias para aqueles sítios e as doutoras que ajudam as pessoas só lá vão de longe a longe. Gostava que a história daquela menina fosse um dia melhor de contar.

Quando cheguei a menina brincava com a cabeça de uma boneca. Reparei nos gestos dela. Penteava a meia boneca como se fosse uma boneca inteira, elegante. Penteava com todo o cuidado e como se ela, a boneca, o pedisse com muito jeito e se tivesse longos e sedosos cabelos estendidos ao longo de um corpo de plástico. Mas não tinha. A cabeça da boneca estava gasta também, como tudo o que estava dentro daquela casa, os tachos negros, a mobília ruinosa, a roupa espalhada sem uso. A cabeça daquela boneca estava suja de séculos como se vivesse há seculos naquela casa. Como se aquela casa, no alto do monte, tivesse sido há séculos um palácio e com o desgaste dos anos e destas quatro gerações restasse apenas uma simples corte já sem animais também. Havia um gato indiferente junto a um fumo a arder. Aquele gato parecia o único satisfeito com o momento. A cada passo o chão afundava-se por baixo de uma fina pele de tapetes desbotados e rotos. As divisões eram pequenas como uma casinha de brincar. Três quartos. Um para a menina e a sua mãe, com uma cama ainda mais pequena e com tanta roupa em cima que cedia ao peso. O outro quarto era para a avó, tinha o mesmo tamanho mas mais desarrumo. O último quarto percebi muito antes de o olhar por dentro, estava ocupado pela bisavó, era cega e surda, gemia e arrancava pedaços da fralda suja. As paredes expunham a sujidade dos seus dedos.

Parei por instantes naquele quarto procurando ouvir aquela pessoa que podia ter sido a matriarca boa se a saúde e a sorte o tivessem permitido. O que teria acontecido já aquela pessoa, perguntava-me num silêncio que mais parecia um luxo no meio de todo aquele ruído infeliz. Não era a pestilência que me acelerava o passo dali para fora. Não era também a luz escura que incomodava a percepção. Tudo é muito nítido dentro daquela casa; a humidade a descer pelas paredes, as sobras dos panos pendurados nas janelas minúsculas, o fumo nas divisões como se alguma coisa estivesse a arder. O que estás a fazer à tua boneca, perguntei cuidadosamente para ter a atenção da menina. Estou a penteá-la para ficar mais bonita! Convenceu-me. E o que fizeste hoje? Andei a explorar lá fora no monte e a descobrir coisas, disse-me da forma mais sincera possível. Olhou-me com toda a atenção quando lhe disse com um sorriso discreto que gostava do nome dela. Sabes, continuei a procurar a atenção da menina que parou, por instantes, de pentear a boneca; o teu nome veio do latim, uma língua muito antiga e ele deu também origem à palavra golfinho. Golfinho! exclamou ela muito admirada. Disse-me que gostava muito de golfinhos apesar de nunca ter visto algum ao vivo. Vi um dia na televisão, mas agora já não posso ver nada porque ela está avariada. O que fazes quando não vês televisão ou andas a explorar lá fora, perguntei para continuar a conversa. Vou para a escola aprender e depois venho para casa para fazer companhia à minha mãe. Não duvidei em nenhum instante de tudo o que a menina dissera. Era tudo verdade.

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Aquela menina é a única coisa bonita e possível dentro daquela casa, e se olhássemos para ela esqueceríamos tudo que está ao seu redor. Pensei que a menina que estava em perigo era a única capaz de salvar todas as outras pessoas que viviam com ela naquela mais intensa e inexplicável miséria. Olha,  diz-me do fundo do teu coração, porque é de lá que vêm as verdades e os desejos, para onde gostarias de ir um dia quando fosses maior? Não sei ainda, gostava de ir com a minha mãe! Aquele desejo parece-me agora ser o melhor brinquedo da menina, porque percebo que se agarra a ele a imaginar coisas enquanto explora o monte ou penteia a cabeça da boneca. Só não sei o que é que esta menina imagina, ou se é capaz de imaginar tudo o que uma menina da sua idade é capaz. Não tenho resposta. Não preciso de reparar em mais nenhum pormenor daquele sítio que não deveria ser uma casa. Preparo-me para sair e espreito outra vez a pequena divisão para ver a menina ajoelhada ao lado da cama a brincar como se estivesse numa casa de bonecas. Mas não está. E assim continuou a pentear o longo e sedoso cabelo da sua boneca.
J. Sá

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