Como evitar que um divórcio se transforme numa guerra

Consultámos cinco juristas para saber como acabar um relacionamento com o mínimo de danos. Informar-se antes de decidir, manter o diálogo apesar das feridas e criar pontes de consenso é a fórmula para começar de novo

O que leva duas pessoas a comprometerem-se a caminhar lado a lado, unidas, sem garantias de que funcione ou seja para a vida, tem uma boa dose de mistério, ou de fé. Porém, se a meio do caminho descobrem que é melhor cada um ir para seu lado, não deixa de ser intrigante o que leva as mesmas pessoas a ficarem presas uma à outra, infernizando-se mutuamente, sem conseguirem colocar um ponto final na ligação e seguir em frente, guardando na bagagem o que foi bom e valeu a pena. Não é fácil, mas é possível, assegura quem sabe.

“Divorciei-me após 13 anos de casamento e em circunstâncias difíceis.” António Quaresma, o mais velho de seis irmãos, filho de pais separados, convenceu-se de que o seu casamento seria duradouro e de que os seus três filhos não passariam por tal provação. Só que não. Mais tarde “percebemos que nos tínhamos casado para sair de casa e éramos só amigos”, acrescenta. Além de nos contar a sua experiência pessoal, António Quaresma é também advogado e já perdeu a conta ao número de divórcios que acompanhou na sociedade de advogados CRBA, mas ainda hoje admite não gostar dos litigiosos: “Perpetuar guerras é uma pura perda de tempo.” Se há filhos, descobre-se depois, “o divórcio é um work in progress, para a vida” e, por mais bem-intencionados que sejam, os “achismos” dos amigos são de evitar.

“A grande questão é saber se as pessoas querem avançar, ou não, e isso nem sempre está resolvido nas suas cabeças”, continua o advogado. Pode ser o chamado “fator ex”, em que a separação amigável emperra em detalhes como o da escola onde inscrever os filhos. Uma análise mais atenta a um dos casos que lhe foram parar às mãos revelou que “o homem tinha outra pessoa quando o casamento acabou, mas não lidou bem com o facto de a ‘ex’ encontrar um novo companheiro”.

Desfazer mitos e lidar com aspetos escondidos da natureza humana faz parte do ofício: achar que o pedido de guarda partilhada é para fugir à pensão de alimentos, impor o serem amigos sem atender ao tempo de que o outro precisa até conseguir fazê-lo, despedir-se do emprego e assim não pagar propinas aos filhos maiores… Também há surpresas boas: “Havia uma terceira pessoa, o divórcio foi amigável, os miúdos aceitaram bem a guarda alternada”, mas após seis meses, estes clientes de António Quaresma deram-se conta de que “gostavam suficientemente um do outro e juntaram-se de novo”. A quem o procura, o advogado costuma lembrar, por isso, que “um percalço numa relação não é o fim do mundo nem o fim da vida” e que é possível seguir em frente.

SIMPLIFICADO, MAS COMPLICADO À MESMA

Com a Lei do Divórcio, em 2008, deixou de ser preciso provar culpa ou esperar meses até dissolver a união, e as responsabilidades parentais passaram a ser reguladas com os dois progenitores presentes nas decisões e atividades dos filhos. E os unidos de facto já não precisam de ir a tribunal para regular responsabilidades parentais, havendo acordo. A simplificação processual não explica a descida do número de processos concluídos (à exceção de 2015, com um ligeiro aumento) que não alcançaram a fasquia dos 22 mil por ano, com a idade média de 45,6 anos acima da verificada em anos anteriores. Os dados do Instituto de Registos e Notariado e do Instituto Nacional de Estatística sugerem que há mais processos fechados em janeiro e antes ou depois das férias, mas pouco dizem acerca da entrada dos papéis na conservatória.

“Por norma, as pessoas deixam passar o Natal e as férias e procuram a via consensual, pelas custas e pelo tremendo gasto emocional de um divórcio litigioso”, esclarece Cristina Borges de Pinho, da Pereira de Almeida e Associados. “Num conflito, só é possível um acordo e paz de espírito se houver cedências de parte a parte”, acrescenta. Porém, nem sempre se chega aí por falta de informação e desconhecimento do impacto das decisões tomadas. Foi o caso da cliente que se desfez da sua casa para comprar outra com o companheiro e viu a união de facto degradar-se quando ele, doente terminal, colocou familiares na casa e a agrediu. “Ele morreu antes do desfecho das ações judiciais cíveis e criminais interpostas por ela, ficando por resolver a partilha da casa emergente do óbito”, conta a jurista, que alerta ainda para a necessidade de cuidados redobrados com as comunicações virtuais, “que servem de prova nas questões de direito da família” e recomenda uma consulta prévia e individual, “pois se a meio do processo não for conseguido o consenso entre as partes, o advogado fica impedido de representar qualquer um dos dois”.

Conhecido por patrocinar pro bono a tentativa de união de um casal de lésbicas antes da aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, Luís Grave Rodrigues admite que “as consequências de uma dissolução são importantes demais para caberem numa minuta genérica fornecida pela conservatória do registo civil”. Antes de ser tomada uma decisão que vai influenciar as pessoas para o resto das suas vidas, é preciso avaliar o que a minuta não diz para evitar ressentimentos e traumas.

Acordos que não são claros e inequívocos raramente acabam bem. “Por vezes, os cônjuges pensam que um bem é comum e pode não o ser”, explica o advogado. Um mau acordo sobre a casa de morada da família pode significar litígios desnecessários “como o arrombamento de uma porta, depois de mudada a fechadura por um dos dois”. Outros vinculam-se numa regulação das responsabilidades parentais mal informada e, depois, o tribunal não aprova as alterações sem fundamento legal. Luís Grave Rodrigues alerta ainda para situações em que, por inércia, não se requereu a coadoção, possível desde 2013, e uma das partes fica impedida de acompanhar o menor se houver separação. Isto aconteceu a duas mulheres que viviam em união de facto: uma delas engravidou com dador anónimo e, mais tarde, dificultou o acesso à mãe afetiva, até se conseguir um acordo limitado nesse campo.

INIMIGOS DO “FINAL FELIZ”

Um divórcio e partilha com acordo, sem advogado, na conservatória, custa entre 280 e 700 euros, em emolumentos que incluem partilha de bens. “Hoje, ainda se persiste em não dar um divórcio, só mesmo por não estar autonomizada a questão dos filhos, ou por uma das partes não abdicar do conforto no plano material”, assegura Alexandra Almeida, da AMBS e Associados.

Depois, há quem não oficialize por questões económicas. “O divórcio é um empobrecimento patrimonial”, implica poder ter duas casas, pagar rendas e pensões de alimentos. “Há uns anos, um juiz disse a um casal: ‘Os senhores não têm dinheiro para se divorciar, mais vale ficarem casados.’ Estavam pendurados pela dívida ao banco”, conta a advogada.

Não existir filhos, haver autonomia financeira e acautelar vicissitudes futuras é meio caminho para um bom fim, mas falta estar emocionalmente capaz para “aceitar a falha de um projeto, de um trauma”. Confirma-o a escala de Holmes-Rahe, que avalia os acontecimentos de vida geradores de stresse: o divórcio surge em segundo lugar, a seguir à morte do cônjuge. Assim sendo, porque não se fala – ou mal se recorre – à mediação familiar?

“Quando o juiz pergunta, na conferência de pais, se querem a mediação, já se está em litígio”, lamenta Alexandra Almeida. A saída deste beco passaria por “uma avaliação obrigatória por equipa multidisciplinar e por perceber a realidade da família antes de se agravar o conflito e sem lhe chamar mediação, porque esta é voluntária e não tem poderes de imposição”.

O Sistema de Mediação Familiar (resposta dos serviços públicos) tem um custo médio de 100 euros (cada parte paga metade) e implica uma ou várias sessões entre o mediador e as partes. Maria Saldanha Pinto Ribeiro, que preside ao Instituto Português de Mediação Familiar, sublinha que “a sessão de mediação deve ser o passo a dar antes de qualquer acordo, até porque ninguém ganha numa sala de tribunal”.

A oferta no público e no privado, com entidades homologadas pelo Ministério da Justiça, ainda supera em muito a procura porque, avança a psicóloga, “não há interesse em que vingue, mas também por questões culturais”.

Apesar disso, hoje há mais pessoas a recorrer a esta via, com resultados satisfatórios. “A mediação pública ajudou-nos a chegar a acordo quanto à questão da residência alternada dos nossos três filhos”, relata Sandra, 44 anos, divorciada após 11 de casamento, em 2015. “Hoje permanecemos amigos, como um casal parental e não conjugal, e encontramo-nos nas atividades dos miúdos.”

Sandra começou por contactar um advogado que, na altura, lhe pareceu “de guerra”, acabando por contactar outro, já durante a mediação. A seu tempo, por mais que lhe custasse aceitar a dor do fim da relação e o ter de abandonar a ideia do regime tradicional das responsabilidades parentais – “ele foi e continua a ser um pai presente e estava disposto a lutar pelos filhos” –, decidiu avançar e mostra-se agradada com esse acordo “à medida”. Os três filhos do casal interiorizaram a mudança sem dificuldades e, mais do que isso, “não foram penalizados com o fim do nosso casamento”. Quanto a Sandra, faz os seus programas, com e sem os filhos, e está a redescobrir, também, os benefícios de ter tempo para si mesma.

O CAMINHO MENOS PERCORRIDO

No chamado divórcio amigável, fora do tribunal, a primeira coisa a fazer é assegurar-se de que existem condições para o mesmo ser feito por mútuo consentimento. Neste caso, é preciso apresentar na conservatória do registo civil um requerimento de separação, a lista de bens do casal e, havendo descendentes, um documento como prova de que o casal concorda sobre a forma de exercício do poder parental, que implica definir a casa da morada de família, o valor da pensão de alimentos, se houver, e o regime de residência: alternada – em que compete aos dois, de acordo com a regra 1906 do Código Civil – ou exclusiva, especificando as visitas e os tempos da criança com o outro progenitor.

Divergências do casal acerca destes pontos devem ser resolvidas, ou mediadas, antes de “meter os papéis”. O acordo sobre o poder parental é avaliado pelo Ministério Público e, caso dispense alterações, faz-se o registo. E é necessário pagar 280 euros. O que emperra geralmente neste processo é a regulação das responsabilidades parentais e é nessa altura que o tribunal entra na equação.

Margarida Pereira da Silva, procuradora na área de família e menores, no tribunal de Cascais, trabalha com divórcios litigiosos e com muitas ações de regulação de responsabilidades parentais propostas pelo Ministério Público. Na conferência de pais, tenta-se obter um acordo e uma boa parte é conseguida logo ali, mas já com o processo pendente. “Não se pode resolver um conflito sem perceber quais são as questões em jogo e trabalhá-las”, explica, “e é ouvindo as crianças que se consegue perceber melhor o conflito dos pais”. A procuradora entende que “não existem divórcios verdadeiramente felizes, pois a separação é um trauma e traz marcas profundas que afetam as crianças”. Dito isto, não se cansa de lembrar aos pais que, se conseguirem falar bem um com o outro, já estão a minimizar esses traumas.

Independentemente das voltas processuais e das circunstâncias de cada família, um divórcio bem conseguido consiste em “trazer a família à criança depois da separação, de modo a que esta se sinta amada e importante, com os pais presentes na sua vida”. Até chegar aqui, há um manancial de coisas que é preciso evitar, ou não continuar a fazer, na relação com os filhos e que são, infelizmente, muito comuns. Tais como: “Denegrir a imagem do outro, impedir o convívio com o progenitor não guardião, desabafar com os filhos como se fossem amigos”… Induzir os filhos a mentir e fazer cobranças leva os miúdos a sentirem-se manipulados, no meio de conflitos de lealdade, e a ocultar afetos genuínos por um para que o outro não fique triste.

A experiência de Margarida Pereira da Silva permite-lhe validar o impacto positivo de comportamento e atitudes dos pais no bem-estar dos menores, e que fazem milagres no processo de transição da família. Esses ingredientes passam por “manter um vínculo seguro e estável com as crianças, cumprimentarem-se nas entregas dos filhos e manterem um relacionamento cordial, sem se agredirem”.

Recomendar terapia a quem está nesta fase de vida, no antes, no durante e no depois, é algo que a jurista faz e explica porquê: “Os pais que vão separar-se também precisam de um colo.” Por fim, a procuradora lança um apelo aos futuros ex-casais: “Deem as mãos e informem-se, unidos, para cumprir esse fim. Preparem-se para aprender quase tudo de novo.” A prova de que o “bom” divórcio é possível e efetivamente gratificante para os filhos veio da boca de uma criança, que lhe disse, na fase final de transição da conjugalidade para a parentalidade: “Agora estou no melhor dos dois mundos, tenho os meus pais e vivo com cada um deles, eles é que já não se têm um ao outro.”

A “BOA” SEPARAÇÃO

Ingredientes para oficializar o fim de uma união, com o mínimo de danos e a bem do equilíbrio de todos os envolvidos, com base na experiência dos juristas

1 – Informar-se em consulta prévia 
Aconselhar-se sobre as consequências da decisão a tomar (contas bancárias, bens em compropriedade, responsabilidades com filhos), antes de assinar minutas

2 – Recorrer à via amigável 
O mútuo consentimento poupa tempo e dinheiro, e minimiza o sofrimento dos filhos

3 – Estar emocionalmente resolvido 
Conversar sobre o conflito e a melhor forma de o resolver (acordos sobre bens comuns, pensão de alimentos, morada de família, responsabilidades parentais)

4 – Preparar-se para ceder
No que diz respeito à partilha dos bens comuns e à regulação das responsabilidades parentais

5- Acordos claros e inequívocos
Um bom divórcio faz bons pais. Não têm de ficar amigos, não devem é ser inimigos, e é preciso respeitar o que foi acordado e escrito

6 – Pacto de não agressão
Lavar roupa suja, desqualificar, ameaçar, ignorar e acusar o parceiro agravam as feridas emocionais, especialmente se o menores estiverem envolvidos

7 – Comunicação consciente
Prudência nas comunicações virtuais, que servem de prova em direito da família, e manter uma conversa civilizada e cordial

8 – Divorciar-se, mas não dos filhos
Manter a continuidade dos afetos e das rotinas dos menores, sem privá-los das atividades de fim de semana e extracurriculares

9 – Procurar apoio profissional 
Recorrer a sessões de mediação familiar, mas também à psicoterapia individual e/ou de casal é decisivo para lidar com as dores da perda e para recuperar o equilíbrio emocional

10 – Começar de novo
Reconhecer o que foi bom no casamento e a importância do outro na vida dos filhos, poupando-os a questões vossas (dinheiro, discussões, cobranças), e refazer a vida

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